Professor do Departamento de Informação e Cultura da ECA, Teixeira Coelho foi diretor do MAC-USP e do Masp, autor de livros fundamentais sobre cultura e arte e ficcionista premiado. A inovação foi uma característica de suas pesquisas e experiências de gestão, cujo vanguardismo engradeceu suas contribuições à universidade e à cultura brasileiras.
José Teixeira Coelho Netto, professor titular e emérito da ECA, faleceu em 4 de junho, aos 78 anos, por complicações de uma mielodisplasia. Nascido em 31 de janeiro de 1944, em São Paulo, teve longa trajetória acadêmica, foi pesquisador, especialista em arte e políticas culturais, curador, escritor, crítico de arte.
Formou-se em Direito, em 1971, pela Faculdade de Direito da Universidade de Guarulhos. Em 1972, começou a lecionar na Faculdade de Arquitetura da Universidade Mackenzie e, em 1973, no Departamento de Biblioteconomia e Documentação da ECA. Em 1976 obteve o mestrado em Ciências da Comunicação pela ECA, com a defesa da dissertação Em Cena, o Sentido. Em 1981 concluiu o doutorado em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela FFLCH, com a tese Uma Outra Cena. Em 1985 defendeu a tese de livre-docência (Usos da Cultura: Políticas de Ação Cultural). Fez pós-doutorado na University of Maryland, nos EUA (2002).
Seu trabalho foi essencial para a concepção de políticas públicas culturais. Nos anos 1980, fundou e coordenou o Observatório de Políticas Culturais da ECA e, com sua equipe, elaborou o Dicionário Crítico de Políticas Culturais. Primeiro núcleo desse tipo no país, o Observatório teve papel fundamental na formação de gerações de agentes culturais. Foi chefe do Departamento de Informação e Cultura de 1993 a 1997.
Entre 1998 e 2002 foi diretor do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC/USP), onde fez mudanças importantes na administração e no acervo. O objetivo da sua gestão foi integrar a instituição ao cenário das artes e da cultura da cidade de São Paulo. Entre 2006 e 2014, esteve à frente da direção artística do Museu de Arte de São Paulo (Masp). Sua gestão voltou-se para a revisão e a reestruturação do plano cultural do museu, criando uma abertura para a arte contemporânea e organizando o acervo a partir de leituras temáticas.
Foi curador da Bienal de Curitiba em 2013 e 2015. Também coordenou o Curso de Especialização em Gestão e Política Cultural do Observatório Itaú Cultural, em colaboração com a Cátedra Unesco de Política Cultural da Universidade de Girona, na Espanha. Desde 2015, coordenava o Grupo de Estudos em Culturas e Humanidades Computacionais no Instituto de Estudos Avançados da USP.
Por sua obra e trajetória intelectual, recebeu o título de professor emérito da ECA em 2015.
No início de abril deste ano, havia assumido o cargo de coordenador do tema Cultura e Artes, no Programa Eixos Temáticos da USP junto com o professor Martin Grossmann.
Foi colaborador de diversas publicações, como os jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, escrevendo, em especial, sobre arte e cultura.
Livros
Teixeira Coelho foi autor de cerca de 50 livros, entre eles, destacam-se:
- A Construção do Sentido na Arquitetura (1979, Perspectiva)
- Em Cena, o Sentido (1980, Duas Cidades)
- O Que é Indústria Cultural (1980, Brasiliense)
- Moderno Pós Moderno (1986, L&PM)
- Arte e Utopia – Arte de Nenhuma Parte (1987, Brasiliense)
- O Que é Ação Cultural (1989, Brasiliense)
- Dicionário Crítico de Política Cultural (1997, Iluminuras)
- As Fúrias da Mente (1998, Iluminuras)
- Niemeyer: Um Romance (2000, Iluminuras)
- História Natural da Ditadura (2006, Iluminuras)
- Arte no Brasil 1981-2006 – Coleção Itaú Contemporâneo (2006, Itaú Cultural)
- Arte no Brasil 1911-1980 – Coleção Itaú Moderno – (2007, Itaú Cultural)
- A Cultura e Seu Contrário (2008, Iluminuras, Itaú Cultural)
- eCultura: a Utopia Final: Inteligência Artificial e Humanidades (2019, Iluminuras)
- Sinais e Maravilhas: da Arte e Cultura na Era Digital (2021, Iluminuras)
Homenagem do programa Metrópolis, da TV Cultura:
Depoimentos
Encontrei poucos parceiros, na área de comunicação social, que se voltassem mais para a produção simbólica do que para as tecnologias. O diálogo com Teixeira Coelho – infelizmente nos deixou em junho deste ano – sempre foi enriquecedor não só na área acadêmica como na ação cultural. Se na ECA/USP nos legou uma obra fundante, na liderança museológica acolheu com entusiasmo a criação artística e reflexiva tanto brasileira como internacional. Acrescentaria um momento muito especial para além do cotidiano em que trocamos experiências desde os anos 1970: tive o privilégio de contar com sua sutil e compreensiva interlocução em minha banca de concurso para titular em 1993. Seus livros já seriam para mim eixos epistemológicos na construção das teorias culturais contemporâneas; mas a palavra viva dos encontros na ECA reforçou uma cumplicidade que não esquecerei.
Cremilda Medina, jornalista, pesquisadora e professora titular sênior do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA
Um pensador da cultura extremamente original. Sua originalidade está presente em suas ideias sobre cultura contemporânea. Ele mostrou que, na arte pós-moderna, a audiência não é passiva, e sim atuante, partícipe do fazer cultural, o que exige dela inteligência e crítica. Não havia reflexão no Brasil sobre isso. Seu trabalho foi essencial para a concepção de políticas públicas na área da cultura no Brasil. Ele era um intelectual independente, um polímata. Não dá para classificá-lo apenas como historiador ou filósofo da arte.
Professor Martin Grossmann, docente da ECA e ex-aluno de Teixeira Coelho
Agora, o inverno
“Aqui na varanda a luz oblíqua dessa tarde outonal atravessa o vinho, a taça… os raios do sol parecem justificar nossa existência e permanência, à espera do ano que vem. Luz de outono… O ano todo tinha que ser outono. Um abraço, t.c”
E o outono se foi — com ele, na madrugada de 4 de junho, foi-se o mais inspirado de meus amigos, Teixeira Coelho. Desde que escreveu esse texto acima, num e-mail de 10 ou 12 anos atrás, o outono se tornou para mim uma outra coisa. Teixeira tinha esse dom: transformar o significado das coisas ao falar sobre elas.
Foi assim desde os tempos de faculdade, de professor para muitos taciturno, naqueles anos 83 e 84 na Escola de Comunicações e Artes da USP. Por sinal, suas aulas versavam sobre significados, códigos, que Teixeira extrapolava em suas mais diversas traduções. Não gostava de regras, de normas, de amarras – preferia ser e estar livre, mas desconfiava de artistas e intelectuais que fizessem dessa liberdade um estilo.
Contra o establishment, viveu boa parte de seu tempo dentro dele para, minimamente, transformá-lo. Depois, desistiu: “Faça o que precisa ser feito; o que virá, não sei…”. Não media ideologias: parecia abominar a todas. Os amigos e a arte o moviam. A covardia, abominava.
Na literatura, o mergulho profundo. Imerso, suas reflexões brotavam. Na música preferia franceses, russos, poloneses — e quem não? Pré-modernos, modernos, pós-modernos. “Modernismo não é movimento nem momento, é o novo”, me disse uma vez ao pensar uma exposição sobre o fin-de-siècle no Masp, que dirigiu com maestria e pouco dinheiro por quase uma década e para onde levou, no final de sua gestão, o atual presidente, que na primeira oportunidade o pôs pra correr… Freud explica.
Ainda na música, a popular, irritava-se com a “fase amigo” de Milton Nascimento, não sem antes repetir que nos anos 70 o cantor das Minas iluminou, com um farol maior, a música brasileira. Em 2012 lhe mostrei Leonard Cohen – para minha surpresa, Teixeira não o conhecia. Impressionado, me comoveu com suas palavras, que pareciam sempre pinçadas de labirintos.
Sua criatividade sobrenatural trazia o novo sempre. Com recursos de um projeto de pesquisas seu, aprovado na Fapesp, e na contramão da falta de dinheiro da Universidade para seus próprios projetos, renovou o MAC e multiplicou por dez sua audiência na Cidade Universitária. Organizou mostras do acervo na Galeria do Sesi, na Avenida Paulista, levando milhares de visitantes. E abriu as portas do museu para grandes arquitetos desenharem sua nova sede, que ele vislumbrava num presente arquitetônico e artístico para a metrópole: “São Paulo não constrói um museu desde os anos 60!”. (Escolhido, o projeto de Bernard Tschumi não deu em nada, pois a USP e o governo paulista se acomodaram na conveniência de ocupar o antigo prédio do Detran com o novo MAC.)
Depois estremeceu as estruturas exatamente desse “último museu construído na cidade”, o Masp: lá dentro mostrou a arte urbana das ruas do mundo inteiro em duas exposições espetaculares; provocou novos olhares sobre o acervo; alterou a forma de mostrar as obras e a forma do próprio museu se mostrar. Reabriu o Masp à arte contemporânea do país e da Europa, Estados Unidos, China, Japão, África e outros países do Oriente. Trouxe a arte da gravura do Louvre, Lucien Freud, Julian Schnabel e o melhor dos expoentes da melhor arte hoje, a dos alemães contemporâneos. Foram trinta exposições em oito anos!
Meses atrás estávamos envolvidos no projeto de 200 anos da emancipação política do Brasil. Recusava-se olhar para 1822. “Temos que olhar para 2030 e depois. Olhar para 2222, Paulo!” Nada mais afinado com Teixeira Coelho do que olhar para o depois, ele que abominava o retrovisor, objeto insistente nas infinitas releituras que se vê na arte e na cultura do país.
Teixeira se foi depois de acenar a Bruna, sua filha, que voltaria para casa na sexta, 3 de junho, pela manhã. No hospital, uma infecção de evolução fulminante o levou em 24 horas. No lugar desse vazio, fica seu legado – a ser lido e relido, pensado e explorado, esgarçado, estressado e colocado de cabeça para baixo.
Depois, o inverno.
Professor titular e em 2015 emérito da ECA-USP, Teixeira Coelho dedicou-se nos últimos anos à arte e cultura computacional, a e-cultura, no Instituto de Estudos Avançados da USP e no Observatório Itaú Cultural.
Seu mais recente livro, “Signs and Wonder: Art & Culture in the Digital Age”, de 2021, escrito originalmente em inglês e lançado em português sob o título “Sinais e Maravilhas: da Arte e Cultura na Era Digital”, tem a mesma inquietação de suas primeiras publicações, como “A Construção do Sentido na Arquitetura”, de 1979.
Para os curiosos e saudosos, um aperitivo:
Paulo Alves, jornalista, turma 1983
Work in progress
No instante da notícia, nossos corações palpitaram doloridos e nossas memórias incorpóreas saíram desesperadas e emocionalmente em busca das narrativas que pudessem justificar o último e secreto suspiro do protagonista. Nessa busca, nossos cérebros acionavam os neurônios da memória e, banhados de sentimentos confusos, conectavam-se aleatoriamente com ícones, índices, símbolos, interpretantes e a tríade, da semiótica peirciana, atropelando e discutindo com os significados, significantes e estruturas da semiologia saussuriana. O comando da lógica queria conseguir nos fazer aceitar que uma mielodisplasia tinha tido o direito de golpear e derrubar nosso protagonista, nosso professor ECA83. Teria sido sua partida um fato de arte, “algo que chocava” e “desestabilizava”? Ou fazia parte da cultura, que “circula pela sociedade” e pela qual o “ser humano cria a realidade”?
Durante sua jornada de 78 anos, José Teixeira Coelho Netto cruzou afiadamente caminhos de muitas vidas para coadjuvar direta ou transversalmente. A morte de uma personalidade como ele, com tantas insígnias (professor emérito da USP, ensaísta, crítico, escritor, curador, etc.), que tanto promoveu sentimentos de reconhecimento por sua postura incessante em refletir sobre cultura e arte brasileiras, assim como promoveu sentimentos de antipatias e ódios, objetivamente trouxe à tona a importância de seu trabalho e de seu legado.
A agitação nos círculos de convívio, pessoais e institucionais, produziram e difundiram, quase que instantaneamente, saudações, réquiens, homenagens, falas testemunhais, vídeos, listas de publicações, opiniões, textos intelectuais aproximando o nome de Teixeira Coelho de grandes pensadores, dentre outros conteúdos referentes à sua vida intelectual e pública, nas mídias digitais. Dessa forma, a notícia de sua morte pipocou espontaneamente nas nossas telas e um “CRTL+F Teixeira Coelho” permitiu que alcançássemos várias das manifestações, filtradas obviamente pelos algoritmos individualizados do Google.
Cenas difusas em curtos flashbacks apresentaram o professor sério e bem-humorado, de voz ressoante e calma, disseminando conteúdos “frescos” de suas investigações acadêmicas. Nós, alunos, saindo da adolescência, precisávamos de um pouco mais de oxigênio para acompanhar conteúdos que estilhaçavam conceitos rígidos de um Ensino Básico vivido no período da ditadura militar brasileira. Nada que algumas cópias xerox depois não dessem para ajudar. A complexidade do seu pensar tem que ser experimentada, num percurso de fluidez, jamais solidificada como verdade Não haverá palavra aqui que possa contaminar quem não se aproximou daquilo que ele apresentou ao mundo.
Incansável e encantado com o potencial da cultura e das artes, TC acompanhou as trilhas das tecnologias atuais, impressionantemente rápidas, ciente desse veloz dinamismo que quer fundir máquinas e homens. Teixeira Coelho não deixava escapar de seus cinco sentidos essa movimentação, constituindo-se num pensador sempre incompleto, ou seja, deliberadamente in progress.
Glaucia Davino, mestra e doutora pela ECA, professora e pesquisadora na área do Audiovisual (Cinema, 1983)
Foto da home:
Luis Ushirobira/Valor