Bernardet em tempo de memória

Por Amir Labaki*

A autobiografia em terceira pessoa de um decano dos críticos de cinema

“Wet Mácula” (Companhia das Letras, 144 págs, R$ 89,90), o livro memorialístico do crítico de cinema Jean-Claude Bernardet, escrito em parceria com a roteirista Sabina Anzuategui, intitulava-se inicialmente “Autobiografia em terceira pessoa”. Sua catalisadora e coautora original seria a editora e tradutora Heloísa Jahn (1947-2022), que faleceu antes de dar forma às conversas gravadas com Bernardet, duas vezes por semana, entre maio de 2021 e junho do ano passado.

A forma final consolida as contribuições de ambas as escritoras. De Jahn, além da pauta cobrindo momentos centrais da trajetória pública e privada do decano dos críticos de cinema do país, hoje aos 87 anos, cumpre-se o roteiro episódico, desenvolvendo-se como “irradiações” a partir de temas e momentos de maneira algo cronológica sem ortodoxia. De Anzuategui, se aplicou a estrutura inspirada por “um livro de memórias de Vivian Gornick” por ela traduzido: “trechos, nunca longos, em que ela se lembra, associa, interpreta pequenas ações”.

Esse parentesco estilístico salta aos olhos ao comparar-se a escrita de “Wet Mácula” com a do logo anterior “O Corpo Crítico” (Companhia das Letras, 2021), uma coletânea de escritos entre o autobiográfico e o ensaístico em torno da relação de Bernardet com o próprio corpo: o embate vitorioso contra a Aids; a recusa, diante do diagnóstico de um câncer, a protocolos médicos que tratam a “longevidade” como “uma necessidade industrial”; o movimento pela dança; as relações entre corpo e pensamento. Outro tipo de livro, uma nova parceria (como antes na ficção desenvolvera com Teixeira Coelho, por exemplo, em “Os Histéricos”), um estilo textual necessariamente distinto.

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Em tudo diferentes entre si, dois volumes anteriores de Bernardet dialogam mais diretamente com “Wet Mácula”. “Aquele Rapaz” (Brasiliense, 1990; Companhia das Letras, 2003), um romance de formação assumido como “ficção autobiográfica”, já percorria a parte inicial do novo livro, com sua infância e juventude, a formação burguesa na França e a áspera mudança para o Brasil, a família cindida e a identificação como “bastardo”.

O segundo volume, um dos tantos não citados nas memórias não exaustivas de agora, é “Trajetória Crítica” (Polis, 1978; Martins Fontes, 2011), uma primeira reunião de críticas cinematográficas publicadas sobretudo na imprensa (Suplemento Literário, Última Hora, A Gazeta, Argumento), em que sucedem aos textos originais breves comentários autocríticos, os contextualizando e debatendo sem qualquer complacência. De “Aquele Rapaz”, assim, a revisita às próprias origens; de “Trajetória Crítica”, por sua vez, não é ao objeto, isto é, à discussão dos comentários a filmes, que reencontramos, mas sim ao método, agora aplicado a episódios de sua própria vida.

Não se trata em “Wet Mácula” de dissecar a evolução do pensamento cinematográfico de Bernardet, mas sim de reafirmar como o cinema é central à sua vivência. Eis sua aproximação como frequentador do Cineclube Dom Vital e como aluno do curso da Cinemateca Brasileira. Eis o encontro fundamental com Paulo Emílio Salles Gomes (1916-1997), “o primeiro adulto que me leva a sério”. Eis o desenvolvimento como crítico, com os primeiros textos, ainda traduzidos do francês, para o Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, e, no calor da hora do Cinema Novo, seu primeiro livro, “Brasil em Tempo de Cinema” (Civilização Brasileira, 1967; Companhia das Letras, 2007). Eis a participação na fundação do curso de Cinema na Universidade de Brasília (UnB) e no da ECA-USP, experiências interrompidas com a brutalidade da ditadura militar (1964-1985), que o perseguiu desde a instalação, como recordam algumas das páginas mais reveladoras do livro.

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Filmes marcantes emergem do fluxo de lembranças com parcimônia. Cito-os em ordem cronológica. As sessões da juventude já em São Paulo de “Lady Hamilton, A Divina Dama” (1941), de Alexander Korda, e do primeiro faroeste, “Império da Desordem” (1943), de Charles Vidor. A emoção de “A Doce Vida” (1960), de Federico Fellini, e a perplexidade diante de “O Ano Passado em Marienbad” (1961), de Alain Resnais. Bernardet gostou de “A Queda” (1973), de Ruy Guerra; considera “Na Estrada da Vida” (1976) “um dos filmes mais radicais de Nelson” (Pereira dos Santos); emocionou-se com o curta “Histerias” (1983), de Inês Castilho; e viveu “um abalo sísmico” vendo “Jogo de Cena” (2007), de Eduardo Coutinho.

Nas conversas editadas, Bernardet é ainda mais econômico quanto a livros. Não desgrudou enquanto não acabou “Crime e Castigo”, de Dostoievski. Enquanto ainda “mal lia e falava português” adorou “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis. Classifica “A Náusea”, de Jean-Paul Sartre, como “livro marcante de minha vida”. Ficou “enlouquecido” com “Galáxias”, de Haroldo de Campos.

“Nunca tinha falado da cegueira”, confessa Bernardet perto do encerramento. O título de suas memórias se refere à progressiva perda da visão diagnosticada desde 2005 pela degeneração conhecida como “wet mácula”. “Narrar a própria vida é uma boia, à qual a gente se agarra”, anunciara logo nas primeiras páginas. Rage, rage against the dying of the light.

Texto publicado na coluna “É Tudo Verdade” de Amir Labaki no jornal Valor Econômico” e reproduzido no site do festival É Tudo Verdade.

* Amir Labaki é formado em Cinema pela ECA (turma 1982) e diretor do É Tudo Verdade – Festival Internacional dos Documentários.

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Jean-Claude Bernardet tornou-se professor de Cinema da ECA em 1968 (na época ECC), foi cassado pelo AI-5 em 1969 e retornou à faculdade no começo da década de 1980. Na década de 1990, doutorou-se em Artes pela ECA. No Departamento de Cinema, Rádio e Televisão (CTR), ministrou disciplinas nas áreas de Roteiro, Dramaturgia Audiovisual e História do Cinema Brasileiro até 2004, quando se aposentou. Em 2012, recebeu o título de professor emérito da ECA. Além de crítico e teórico de Cinema, é também ficcionista. Participou de diversos filmes como roteirista, assistente de produção, diretor e também ator.

a escritora Sabina Anzuategui - FT Dani Sandrini

Sabina Anzuategui tem bacharelado, mestrado e doutorado pela ECA. Formou-se em Cinema e Vídeo (turma 1993), fez mestrado em Comunicação e Estética do Audiovisual (2003) e doutorado em Meios e Processos Audiovisuais (2012). Professora e escritora, trabalhou como roteirista em vários longas e é criadora do canal de vídeos “Exercícios de Criação Literária” e da séria em quadrinhos “Pérolas Perdidas”.

Fotos:

Jean-Claude Bernardet: Divulgação/Renato Parada

Sabina Anzuategui: Dani Sandrini

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