O Zé de cada um
Estava comemorando comigo mesma meu aniversário na praia da Barra Velha, em Soure, na Ilha do Marajó, descanso depois de um trabalho em Belém. De vez em quando a internet pegava na barraquinha do caranguejo, e eu conseguia receber umas mensagens de parabéns. Numa delas, logo no início da tarde, “nossa! só agora fiquei sabendo do Zé”. Por um momento pensei que era ainda alguma notícia sobre o casamento dele com o ator e diretor Marcelo Drummond, um mês antes. Mas não. Informações confusas sobre um incêndio, que aos poucos foi ficando mais e mais grave. Sem saber muito o que fazer, fui direto pra água. Praia de rio e mar, bem pertinho da linha do Equador. Senti que a única e melhor atitude que podia tomar naquele momento era cantar pro Zé. Naquela água morna e leve cantei pra Oxum, uma de tantas canções que Zé compôs pro espetáculo Bacantes, e que cantamos sempre que podemos no teatro e em encontros onde tem um tambor e um cavaquinho. Daí continuei com outras canções desse e outros espetáculos, passei pra alguns sambas antigos que aprendi lá mesmo ou na vida, mas que são sempre cantados no teatro. Fiquei agradecendo tudo que vivi e aprendi no Oficina nesses muitos anos de mortes e renascimentos.
Fui parar no Teatro Oficina, a sede, pela primeira vez, num Domingo de Ramos há exatos 30 anos. Antes tinha assistido o espetáculo As Boas, de Jean Genet, numa encenação delirante no Centro Cultural São Paulo, com Zé e Marcelo Drummond fazendo As Boas, as empregadas, e Raul Cortez de Madame. Um outro Zé, o Zé Miguel Wisnik, em cena ao piano, Verônica Tamaoki na direção de cena, um luxo só.
Depois de uns anos de flerte, acabei aceitando um convite do Zé para tentar afinar o coro de Bacantes pro espetáculo do réveillon de 1999 para 2000, acreditando ser ali a passagem do milênio.
Um Zé pra cada um, pra cada lugar
Lendo um pouco do que tem saído na imprensa sobre o Zé desde sua morte trágica pelo fogo – como tudo isso pode caber em uma vida! –, vou entendendo que existe um Zé pra cada um, pra cada lugar, que ele já está espalhado e existindo em tantos lugares e em tanta gente. Mesmo os acontecimentos daquela semana trágica, cada um que teve o Teatro Oficina presente em algum momento da vida foi vivendo a seu jeito.
Eu estava com a volta de Marajó marcada pro dia 5, saí de lá às 5 da manhã e vim voltando. Trajeto Soure-Belém pelo rio-mar, Belém-São Paulo pelas nuvens, caminho que me propiciou lembrar as diversas encarnações que vivi no Oficina. Os primeiros aprendizados, muita observação, de cara não entendia nada… Fiz Bacantes na virada do ano, mas fui chegar mesmo no Citerrão – o morro onde as Bacantes faziam seus rituais a Dionísio – só na montagem seguinte, nas últimas apresentações para gravação em vídeo. Em remontagens seguintes fui entendendo mais e mais e voltando a não entender nada. Depois de uma das viagens da Companhia à Europa, fui parar na ilha de Creta, na Grécia, de tanto que eu queria entender e conhecer. “Cre-e-ta gru-u-ta secre-e-ta sagrada dos bruxos”, cantávamos no espetáculo. E depois de novo em uma pequena comitiva acompanhamos Zé a Epidauro, teatro grego perto de Atenas, pra tentar levar Bacantes pro festival de tragédias. Essa ideia cabe a nós levar adiante.
Então vieram Os Sertões, e a viagem foi Brasil adentro, fechando a temporada com chave de ouro em Canudos, na Bahia. E tantas aventuras depois, espetáculos, personagens, lutas políticas, confusões internas, o Revista Bixiga Oficina do Samba, misturando o bairro do Bixiga no entorno do Oficina, o próprio teatro, o coro, o trio Revista do Samba, o Movimento Bixigão, o Teatro Popular Solano Trindade, a Escola de Samba Vai-Vai. Zé sempre insPirou essa mistura, encontro de multidões, juntos e misturados no aqui agora com muita felicidade guerreira.
Tantos Zés agora espalhados pelo Bixiga, pelo Brasil, pelo mundo
O Zé político, o Zé poeta, o Zé do samba, o Zé da festa, o Zé diretor exigente do teatro mais intenso do mundo, o Zé sedutor, o Zé amoroso e tantos e tantos outros. O Zé ator, o Zé palhaço, o Zé amante da noite, do vinho, de todos os prazeres bem mundanos, sagrado e profano juntos, o Zé provocador. Provocador sempre, em todos esses e outros personagens. Que aceitou feliz a homenagem no Fescete (Festival de Cenas Teatrais) em Santos em junho deste ano, assumindo-se sem falsa modéstia como merecedor por toda uma vida completamente entregue ao teatro.
Sinto que a maior homenagem que podemos prestar ao Zé é continuar os trabalhos criados e plantados no Oficina, publicar muitos livros com peças, comentários de ensaios, reflexões, gravar muita música, fazer filmes, levar pro mundo esse jorro de criação, essa linguagem única vivida, cultivada e sempre reinventada ali, pra pirar e insPirar novas e novas gerações.
E o Oficina segue vivíssimo, com uma programação intensa e muitos caminhos apontados
Mutação de Apoteose, dirigido por Camila Mota em cartaz até 29/7 e preparando-se para ganhar outros palcos-pistas, seguir viagem. Rasga Coração, espetáculo com canções de Villa-Lobos com direção de Roderick Himeros e Felipe Botelho, em cartaz nos finais de semana de agosto, e durante a semana o Bailado do Deus Morto, de Flávio de Carvalho e direção de Marcelo Drummond. O trabalho de transcriação d’A Queda do Céu, a partir do livro do xamã Yanomami Davi Kopenawa em parceria com o antropólogo Bruce Albert, que segue vivo com a equipe que estava trabalhando com o Zé até logo antes de toda essa tragédia. Isso sem falar do Oficina Samba que vai aumentando cada vez mais o repertório e o público, dos shows que pipocam a partir desse elenco pra lá de musical, com seus corifeus surgidos dos coros dos espetáculos mais recentes da Companhia, como a recriação de Roda Viva, a Macumba Antropófaga e Bacantes, este sempre o grande hit e espetáculo de iniciação ao teatro e à linguagem do Oficina. Sementes plantadas pelo Zé ao longo dos mais de 60 anos de teatro, e as muitas companhias que vêm se formando, dissolvendo e se formando novamente, com tantos frutos ainda a nascer e amadurecer.
E pra deixar plantado aqui, também o Zé natureza, terra, rio, que está virando um parque pra cidade, “xamando” o rio Bixiga pra tomar de novo a posse da face da terra. Que o Zé provocador continue vivendo em cada um de nós. A hora é aqui agora pra gente se ligar e fazer acontecer o Parque do Rio Bixiga.
Pra ouvir:
- Meu cavalo tá pesado com o Revista do Samba e o Coro Antropófago do Oficina
- Já é madrugada com o Revista do Samba e Zé Celso cantando
- Abre alas com o Revista do Samba, Zé Celso cantando e o Coro Antropófago do Oficina
- O disco Revista Bixiga Oficina do Samba inteiro
Letícia Coura, cantora, compositora, escritora, atriz e preparadora vocal do Teatro Oficina (mestra em Artes Cênicas pelo Departamento de Artes Cênicas da ECA)
Leticia Coura! Grande atriz e cantora! Rimou ❤️