Levaremos décadas para dar conta do significado de José Celso Martinez Corrêa
São muitas as revoluções por ele empreendidas, moleculares e rizomáticas. A multidão que lotou o Teatro Oficina no dia de seu velório, regado a muita música e celebração, demonstra a amplitude de seu legado, que se estende para além do teatro e das artes, alcançando camadas mais densas e estruturantes.
Era a vivência de uma micropolítica e de uma estética da existência, exercício radical da liberdade que transformou a vida em obra de arte. É fácil dizer que vida e arte não se separam, difícil é converter o discurso em prática, e isso Zé Celso não teve medo de fazer. Antecipou há mais de cinco décadas as novas epistemologias de sexo e afeto. Experimentou as potencialidades de seu corpo e a expansão da consciência. Vontade e desejo radicais marcaram sua defesa do território do Bixiga e do seu teatro, sem ceder às pressões, que não foram poucas.
Não por acaso, Zé Celso esteve presente na trajetória de vários docentes e pesquisadores da USP. Além de mim mesmo, destaco os professores Cibele Forjaz, Marcos Bulhões e Luiz Fernando Ramos. Também se debruçaram sobre o legado do Oficina alunos de pós-graduação como Thiago Arrais Pereira, Letícia Coura, Igor Martins e Biagio Pecorelli, cujos trabalhos podem ser encontrados no banco de teses e dissertações da universidade. Figura, também, no livro Metrópole e Cultura, da vice-reitora da USP, Maria Arminda do Nascimento Arruda, como um dos marcos da modernização cultural na cidade de São Paulo.
Em relação a sua estética, equacionou os problemas levantados pelos modernistas, ampliando a ideia de antropofagia, diluindo as fronteiras entre erudito e popular. Tupi or not tupi tornou-se um mantra, da Tropicália à sua criação ímpar, a tragycomediaorgia, que diluiu a ideia burguesa de personagem e construiu coros e ditirambos. No final dos anos 1960, suas montagens de O Rei da Vela, Roda Viva e Gracias, Señor tornaram-se emblemáticas de uma geração.
Nos anos 2000, a transformação de Os Sertões, de Euclides da Cunha, em cinco espetáculos monumentais. Em 2007, no intervalo entre uma parte e outra de Os Sertões, foi ator dirigido por Marcelo Drummond, seu marido, em Santidade, peça de Zé Vicente proibida durante o período militar. Encarnou Ivo, um homossexual mais velho e deslumbrado que abrigava um ex-seminarista convertido em garoto de programa (magistralmente interpretado por Haroldo Costa Ferrari). Lembro, nessa ocasião, dele dizer que Santidade deveria ter sido impressa em papel arroz, como as bíblias. E Zé conseguiu, de fato, transformar o espetáculo em uma epifania, uma comunhão paradoxalmente católica e pagã.
Lembro, também, dele falar que para ser dionisíaco era necessário ser extremamente apolíneo. Que assim sejamos. Evoé!
Ferdinando Martins, professor do Departamento de Comunicações e Artes da ECA