Marcelo Rubens Paiva tinha 23 anos e estava no primeiro ano do curso de Rádio e TV da ECA quando lançou o “Feliz Ano Velho”, em dezembro de 1982, no Sesc Pompeia – três anos depois de ter sofrido o acidente que mudou sua vida.
Lançado pela coleção “Cantadas Literárias”, da editora Brasiliense de Caio Graco, o livro foi sucesso de público e crítica: em 1983 foram vendidos cerca de 10 mil exemplares por mês. Calcula-se que até hoje tenham sido vendidas 1,5 milhão de cópias, nas diversas editoras pelas quais passou. Ficou em primeiro lugar na lista dos livros mais vendidos por anos e foi traduzido para diversas línguas. O livro foi vencedor dos prêmios Jabuti e Moinho Santista, teve duas montagens para o teatro e foi adaptado para o cinema.
Em dezembro de 2022, Marcelo voltou ao Sesc Pompeia para lançar a edição comemorativa de 40 anos, pela editora Alfaguara, do grupo Companhia das Letras. A edição traz imagens (páginas do manuscrito original, reportagens da época, capas das edições brasileiras e estrangeiras, cartaz da primeira adaptação para o teatro), uma apresentação da atriz Maria Ribeiro e uma introdução do autor 40 anos depois.
Com seu estilo coloquial, despojado, bem-humorado e irônico ao contar sobre o acidente que sofreu em dezembro de 1979 e os desafios que se seguiram para superar o trauma, incluindo passagens de sua vida de estudante, dos amigos e da família, o livro tornou-se ícone de uma geração. “Escreveu enquanto reaprendia a existir”, escreve Maria Ribeiro na apresentação. Segundo ela, Marcelo inaugurou a revolucionária categoria do “escritor pop star” e inventou “a literatura do tipo raio X”.
A seguir, alguns trechos da introdução da edição comemorativa em que a ECA e a USP são citadas:
Ganhei então uma máquina elétrica do meu tio Cláudio, que soube que eu escrevia. Facilitou minha independência datilográfica pós-cirúrgica. Podia estar sozinho no quarto escrevendo concentrado. Geralmente ouvindo música. Por sorte, a faculdade, a Escola de Comunicações e Artes da USP, me exigia pouco. Estávamos em greve. Na verdade, num motim.
Os anarquistas ganharam as eleições para o Centro Acadêmico exatamente em 1982. Os alunos exigiram reformas radicais no currículo e na avaliação, abolimos listas de chamada, quem estivesse a fim assistia às aulas, quem não estivesse fazia um projeto para ser entregue no fim do ano que englobasse todas as disciplinas. Fiz parte do segundo grupo. Filmamos na minha casa um roteiro surrealista. Tinha maconha transbordando pelas frestas da minha vida e do campus. Não me lembro de muita coisa daquele tempo. Me lembro de filmarmos a colega Suzana nua, sentada no vaso sanitário da área de serviço, e uma trepadeira crescendo em suas pernas. Minha casa foi escolhida porque a estética do nosso trabalho era branca e vermelha, e os móveis da cozinha de fórmica da minha mãe eram dessa cor.
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Era 1982, o ano em que foram lançados os discos da Blitz, Paralamas, Ira, Cazuza e Barão Vermelho, Titãs, do Circo Voador, ano em que houve o festival punk no Sesc de São Paulo, recém-inaugurado, da Democracia Corinthiana, do começo da luta pelas Diretas Já, e lá estava eu narrando acontecimentos que rolaram nos campus da USP, Unicamp, em repúblicas, nas ruas, acampando com a namorada, dentro de uma UTI, as aflições da minha imobilidade, as angústias sobre como seria o futuro e relembrando os anos da ditadura, anos agitados, e minha juventude, onde eu não via diferença entre dia e noite.
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Andava pela USP com um convitezinho implorando para meus colegas e desconhecidos aparecerem, caso contrário não iria ninguém. Data marcada: 14 de dezembro de 1982, exatamente três anos depois do meu acidente.
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Repercutiu. Às oito da noite, apareceu uma multidão de amigos da USP, Unicamp, das casas noturnas, da AACD, desconhecidos, parentes, amigos da minha família.
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Quando o livro vendeu a primeira edição, Caio me ligou festejando, mas continuei a minha vida como se nada tivesse mudado, estudando na USP, frequentando o gramado da ECA e as casas noturnas de rock e punk, prestigiando shows de amigos e eventualmente fazendo lançamentos em cidades onde me chamavam, como no Recife, em que fui apresentado ao ídolo Alceu Valença. No Rio de Janeiro, apareceu a velha esquerda revolucionária, achando que tinha escrito um livro sobre o meu pai e a luta. Eu informava logo de cara que não era sobre ele.
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Em abril de 1985, capa do caderno Ilustrada de Miguel de Almeida: “Esses escritores e suas esquisitices prediletas”. Lá estava eu no alto da página numa foto com Lygia Fagundes. Ela, a grande dama da literatura brasileira. Eu, um aluno do segundo ano da ECA. Minha mania era ouvir música alta e escrever depois das 22 horas até a madrugada.
Sobre o autor
Formado em Rádio e TV pela ECA em 1987, Marcelo Rubens Paiva é escritor, dramaturgo e roteirista. É autor de mais de uma dezena de romances, além de livros infantis, peças teatrais e roteiros para cinema e TV. Foi vencedor dos prêmios Jabuti (por mais de uma vez), Shell, Moinho Santista e Academia Brasileira de Letras. Foi colunista da Folha de S. Paulo e das revistas Veja e Vogue RG e atualmente escreve para o jornal O Estado de S. Paulo.